22 Agosto 2017
"Que fazer? Não há solução “técnica”, nem dentro dos marcos do mercado. Deve-se reduzir drasticamente, num prazo bastante curto, a utilização de energias fósseis não somente na produção de eletricidade, mas nos transportes, calefação, indústria, agricultura produtivista, etc, etc. E já que Exxon, British Petroleum, General Motors, etc, não desejam cometer suicídio econômico – e nenhum dos governos capitalistas têm a intenção de forçá-los a isso – é preciso que a própria sociedade tome nas mãos os meios de produção e distribuição, e reorganize todo o sistema produtivo – garantindo emprego digno a todos os trabalhadores de empresas que estariam condenadas à extinção ou a redução drástica" escreve Michael Löwy, sociólogo formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) em artigo publicado por Revista Movimento, 19-08-2017. A tradução é de Flavia Brancalion.
É urgente desacelerar o caminho suicida cavado pelo sistema por meio de um amplo movimento no combate contra a mudança global e o capitalismo fóssil.
J.M.W. Turner "Snow Storm: Hannibal and his Army Crossing the Alps", 1812.
Resenha de dois livros¹ de marxistas norte-americanos sobre os desafios do Antropoceno:
As publicações de ecologia crítica encontram nos Estados Unidos um público crescente, como o sucesso do último livro de Naomi Klein (This Changes Everything) pode atestar. No interior desse campo se desenvolve também, cada vez mais, uma reflexão ecossocialista de inspiração marxista, a qual pertencem os dois autores aqui resenhados.
Um dos promotores ativos dessa corrente é a Monthly Review e sua editora. É ela que publica o livro importante e muito atual sobre o Antropoceno de Ian Angus, ecossocialista canadense e editor da revista eletrônica Climate and Capitalism – um livro reconhecido com entusiamo tanto por cientistas, como Jan Zalasiewicz ou Will Steffen, entre os principais promovedores dos trabalhos sobre Antropoceno, quanto por pesquisadores marxistas, como Mike Davis e Bellamy Foster, ou os ecologistas de esquerda como Derek Wall, dos Verdes ingleses.
A partir dos trabalhos do químico Paul Crutzen – Prêmio Nobel por suas descobertas sobre a destruição da Camada de Ozônio – do geofísico Will Steffen, e de outros, a conclusão de que entramos numa nova era geológica, distinta do Holoceno, começa a ser amplamente admitida. O termo “Antropoceno” é o mais utilizado para designar essa nova época, caracterizada por profundas mudanças no sistema-terra, resultante da atividade humana. A maioria dos especialistas concorda em datar o início do Antropoceno em meados do século XX, quando se desencadeia uma “Grande Aceleração” de mudanças destrutivas: ¾ das emissões de CO2 foram produzidas a partir de 1950. O emprego do termo “Antropo” não significa que todos os seres humanos são igualmente responsáveis por essa mudança dramática e preocupante: os trabalhos dos pesquisadores mostram claramente a esmagadora responsabilidade dos países mais ricos, os países da OCDE.
Conhecemos também as consequências de tais transformações, principalmente a mudança climática: elevação de temperatura; multiplicação de eventos climáticos extremos; aumento do nível das águas do oceano, afogando as grandes cidades costeiras da civilização humana, etc. Tais mudanças não são graduais e lineares, podem ser abruptas e desastrosas. Essa parte do estudo me parece pouco desenvolvida, aliás: Ian Angus menciona esses perigos, mas não discute as ameaças que pesam sobre a sobrevivência da vida no planeta de forma mais concreta e detalhada…
Que fazem os poderes constituídos, os governos do planeta, sobretudo os dos países ricos, principais responsáveis pela crise? Angus cita o comentário feroz de James Hansen, climatólogo da NASA norte-americana na COP21 de Paris (2015): “uma fraude, farsa… não passa de uma besteira”². Com efeito, se todos os países presentes na Conferência das Partes sobre as Mudanças Climáticas mantiverem suas promessas – pouco provável, visto que nenhuma sanção foi prevista pelos acordos de Paris – não poderemos evitar um aumento da temperatura do planeta superior a 2º C: o limite aceito oficialmente que não se deverá em nenhum caso exceder, se se quiser evitar um processo irreversível e incontrolável de aquecimento global. Na realidade, o verdadeiro limite se aproximaria de 1,5º C, como admitiram os próprios participantes da COP 21. Conclusão de Naomi Klein: ainda é tempo de evitar um aquecimento catastrófico, mas não no quadro de regras atuais do capitalismo.
Ian Angus partilha desse diagnóstico – próximo, nos termos “atuais” – e dedica a segunda parte de seu livro à raiz do problema: o capitalismo fóssil. Se as grandes empresas e os governos continuam a lançar carvão nas caldeiras do trem desgovernado (run-away train) do crescimento, isso não se deve a uma falta da “natureza humana”; trata-se de um imperativo essencial ao próprio sistema capitalista. O capitalismo não pode existir sem crescimento, expansão, acumulação de lucro e, portanto, destruição ecológica. Ora, o crescimento está baseado, há quase dois séculos, nas energias fósseis, que hoje concentram mais investimentos que qualquer outro ramo da produção – sem falar das generosas subvenções acordadas pelos governos. Só as reservas de petróleo representam mais de 50 trilhões de dólares: não se pode contar com a boa vontade da Exxon e Cia para abrir mão desse trunfo. Sem falar dos outros ramos da produção – automotivo, aviação, plástico, químico, autoviário, etc, etc – estreitamente associados ao capitalismo fóssil. Os 1% que controlam as riquezas dos 99% restantes da humanidade concentram também o poder econômico e político; reside aí a razão do fracasso retumbante das “conferências internacionais” sobre a mudança climática, que sempre terminam em “besteira” (bullshit), para usar as palavras de James Hansen.
Qual é, então, a alternativa? Não se pode mais retornar ao Holoceno, observa Angus. O Antropoceno já se iniciou e isso não pode ser revertido. A mudança climática em curso perdurará por milhares de anos. É urgente desacelerar o caminho suicida cavado pelo sistema por meio de um amplo movimento que associe todos aqueles dispostos a se juntar no combate contra a mudança global e o capitalismo fóssil – na esperança de poder, no futuro, substituir o capitalismo por uma sociedade solidária, o ecossocialismo. A Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Terra Mãe, em Cochabamba, Bolívia, em 2010, que reuniu dezenas de milhares de indígenas, agricultores, sindicalistas e trabalhadores é um exemplo concreto desse movimento.
E o que se passa entre os partidários do socialismo? Ian Angus constata o pesadelo ecológico que a URSS representava, sobretudo a partir do momento em que Stálin liquidou os ecologistas soviéticos. (Essa parte merece igualmente um desenvolvimento mais amplo). Alguns socialistas criticam o que chamam de “catastrofismo” dos ecologistas; outros pensam que a ecologia é um diversionismo em relação à “verdadeira” luta de classes. Os ecologistas não são um bloco homogêneo, mas partilham a convicção de que uma revolução socialista efetiva só pode ser ecológica, e vice-versa. Da mesma maneira sabem que precisamos ganhar tempo: a luta por desacelerar o desastre, obtendo vitórias parciais contra a destruição capitalista e em favor de um futuro ecossocialista, fazem parte de um mesmo processo integrado.
Quais são as chances de tal combate? Não há nenhuma garantia, constata sobriamente Angus. O marxismo não é um determinismo. Marx e Engels escreveram no Manifesto Comunista que a luta de classes pode levar a uma transformação revolucionária da sociedade ou à “ruína comum das classes em luta”. No Antropoceno, a “ruína comum” – o fim da civilização humana – é uma possibilidade real. A revolução ecossocialista não é de forma alguma inevitável. Deveremos ser capazes de construir uma ponte sobre a brecha entre a raiva espontânea de milhões de pessoas e o início de uma transformação ecossocialista. Conclusão do autor desse livro estimulante e documentado admiravelmente: se lutarmos, poderemos perder; se não lutarmos, certamente perderemos…
Richard Smith não discute o Antropoceno, salvo em uma frase que resume seu propósito: Entramos no “Antropoceno”, isto é, “não é mais a Natureza que comanda a Terra. Somos nós que comandamos. É tempo de começar a tomar decisões conscientes e coletivas”.
Seu livro é muito mais que uma crítica do “capitalismo verde” como o título indica. Trata-se de uma coletânea de textos, em ordem um pouco improvisada e com algumas repetições; mas o conjunto é de admirável coerência e rigor. Poderíamos começar pelo diagnóstico: em maio de 2013 o observatório de Mouna Loa no Havaí constatou a concentração de CO2 na atmosfera em mais de 400 ppm (partes por milhão). Não havia alcançado tal nível desde o Pleistoceno³, há três milhões de anos, quando a temperatura era 3º ou 4º C mais elevada que hoje; o Ártico não tinha congelado e o nível do mar estava 40 metros acima do atual. Os lugares que hoje chamamos Nova York, Londres, Xangai estavam submersos… os climatólogos não cessam de multiplicar os avisos: caso não se suspenda, a curto prazo, as emissões de gás de efeito estufa, seguiremos rumo ao aquecimento global incontrolável e irreversível, que terá por resultado o colapso de nossa civilização e pode nos extinguir enquanto espécie.
Ora, e o que acontece? Os negócios continuam como sempre (“Business as usual”), as emissões não só deixaram de diminuir nos últimos anos, como não pararam de aumentar, batendo recordes a cada ano. Continuamos a extrair energia fóssil e a buscamos cada vez mais longe, nas profundezas do oceano, ou nas areias betuminosas. Em suma, o espírito dominante pode ser resumido pela fórmula “depois de mim, o dilúvio”.
De quem é a culpa? Assim como Ian Angus, Richard Smith aponta claramente o responsável pelo desastre: o sistema capitalista e sua necessidade imperativa, irresponsável, insaciável de “crescimento”. O crescimento não é uma mania, moda ou ideologia: é a expressão racional de exigências da reprodução capitalista. “Crescer ou morrer” é a lei de sobrevivência em meio a selva do mercado competitivo capitalista. Sem o excesso de consumo não há crescimento, e sem este só resta a crise, a ruína, o desemprego em massa. Mesmo um economista “dissidente” como Paul Krugman acabou por se resignar ao consumismo: trata-se, escreve, “de uma corrida de ratos, mas que correm dentro de suas gaiolas; é isso que faz girar a roda do mercado”.
É simplesmente a lógica do sistema. Daí o fracasso das conferências internacionais, do “capitalismo verde”, das Bolsas de direitos de emissão, das taxas ecológicas, etc, etc. Como exprimiu cinicamente o economista neoliberal ortodoxo Milton Friedman, “as corporações se envolvem nos problemas para fazer dinheiro, não para salvar o mundo”. Conclusão de Richard Smith: Se queremos salvar o mundo, deve-se retirar das corporações o poder sobre a economia. “Ou salvamos o capitalismo, ou salvamos nós mesmos. Não podemos salvar os dois”. O capitalismo é uma locomotiva descontrolada, que derruba continentes inteiros de florestas, devora oceanos de fauna e flora, bagunça o clima e avança rapidamente em direção a um abismo: a catástrofe ecológica. Donde a crítica de Smith às ilusões dos economistas ou ecologistas partidários do “capitalismo verde” (tão numerosos nos EUA e também na França!) – esse “deus que fracassou” – ou de um “decrescimento” respeitando as regras do mercado e da propriedade privada (Herman Daly).
Que fazer? Não há solução “técnica”, nem dentro dos marcos do mercado. Deve-se reduzir drasticamente, num prazo bastante curto, a utilização de energias fósseis não somente na produção de eletricidade, mas nos transportes, calefação, indústria, agricultura produtivista, etc, etc. E já que Exxon, British Petroleum, General Motors, etc, não desejam cometer suicídio econômico – e nenhum dos governos capitalistas têm a intenção de forçá-los a isso – é preciso que a própria sociedade tome nas mãos os meios de produção e distribuição, e reorganize todo o sistema produtivo – garantindo emprego digno a todos os trabalhadores de empresas que estariam condenadas à extinção ou a redução drástica.
Não basta substituir as energias fósseis por outras renováveis. É necessário reduzir substancialmente a produção e o consumo (“decrescimento”). Segundo Richard Smith, ¾ dos bens produzidos hoje são inúteis, ou nocivos, ou eivados de obsolescência programada. Se pararmos de produzir para acumular lucro, em favor de satisfazer necessidades, poderemos fabricar produtos úteis, duráveis, reparáveis, adaptáveis, utilizáveis por dezenas de anos – como minha velha VW 1962, que ainda roda, diga-se… Daremos prioridade às necessidades sociais e ecológicas que atualmente são negligenciadas ou sabotadas: a saúde, a educação, a moradia (conforme as normas ecológicas), a alimentação saudável e orgânica. Poderemos trabalhar muitas horas a menos e ter férias mais longas.
Contudo, isso implica romper radicalmente com o sistema capitalista, retirar dos proprietários privados o controle da economia, e planificá-la de modo democrático: o ecossocialismo. As comissões de planejamento poderão ser eleitas nos níveis local, regional, nacional, continental e, cedo ou tarde, internacional. E as grandes decisões serão tomadas pela própria população: carros ou transporte coletivo? Nuclear ou saída do nuclear? E assim em diante. Trata-se de substituir a “mão invisível do mercado” – que só vai perpetuar os negócios de sempre (“business as usual”) – pela mão visível das decisões democráticas da sociedade. Uma tal planificação democrática se situa em oposto diametral à triste caricatura burocrática que foi a “planificação central” – perfeitamente autoritária, senão totalitária – da extinta URSS. Trata-se de um projeto de uma outra civilização, uma civilização ecossocialista.
A demonstração de Richard Smith é perfeitamente coerente. A única ressalva que eu lhe faria é a ausência de mediações. Como passar do curso suicida da civilização capitalista a uma sociedade ecossocialista? É uma questão pouco abordada em seu livro…
O ponto de partida aqui só pode ser as mobilizações atuais, as que Naomi Klein designa como Blockadia: as lutas dos indígenas e dos ecologistas canadenses contra as areias betuminosas, as lutas nos Estados Unidos contra os oleodutos (o oleoduto XXL foi bloqueado), as da França contra o gás de xisto (vitoriosa provisoriamente), as das comunidades indígenas da América Latina contra as multinacionais petrolíferas ou mineradoras, etc. Essas lutas – locais, regionais ou nacionais – são essencialmente, sob vários aspectos, as que: a) possibilitam a desaceleração do curso em direção ao abismo; b) reerguem o valor da luta coletiva; c) fomentam a tomada de consciência anti-sistêmica (anticapitalista).
Felizmente, no último parágrafo de seu livro, Richard Smith se interessa por essa dimensão concreta do combate em favor do ecossocialismo, saudando o impulso, “no mundo inteiro, de lutas contra a destruição da natureza, contra as barragens, contra a poluição, contra o subdesenvolvimento, contra as usinas químicas e centrais térmicas, contra a extração predatória de recursos, contra a imposição dos OGMs (Organismos Geneticamente Modificados), contra a privatização de terras comuns, de água e serviços públicos, contra o desemprego capitalista e a precarização. Hoje temos uma onda crescente de “despertar” de massas global – quase uma revolta global massiva. Essa insurreição global está ainda no início, incerta de seu futuro; mas seus instintos democráticos radicais são, acredito, a última e melhor esperança da humanidade”.
(Texto originalmente publicado no site Mediapart.)
¹ Nenhum dos dois livros foi publicado ainda no Brasil, ou em português. Em tradução livre, os títulos seriam: “Enfrentando o Antropoceno, capitalismo fóssil e a crise no sistema da Terra” e “Capitalismo Verde, o deus fracassado”.
² “a fraud, fake… just bulshit”, no que o autor comenta em seguida, entre parânteses, “difícil de traduzir”. (n. trad.)
³ Período compreendido entre 2,588 milhões e 11,7 mil anos atrás. (n. edi.)
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Antropoceno, capitalismo fóssil, capitalismo verde e ecossocialismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU